“Science fiction is nothing but reality ahead of schedule.” – Syd Mead
A ficção científica relaciona-se com a ciência factual de maneira complexa e multifacetada: seria reducionista afirmar que o sci-fi está baseado, ou tem seu chão (como se diz em inglês: it‘s grounded), no que a ciência de sua época já realizou, e que a partir desta base sólida alça vôos com o imaginário e realiza seus empreendimentos criativos. Esta seria uma visão parcial e limitante, como se os artistas da ficção científica sempre estivessem com os pés firmemente plantados num conjunto bem estabelecido de verdades científicas reconhecidas consensualmente pela comunidade de cientistas, e só então se engajassem em especulações.
O que ocorre, e com grande frequência, é que o sci-fi lança-se a especulações que desgrudam do solo firme do que é já reconhecido como fato pelos cientistas; os artistas do sci-fi servem como forças visionárias, antecipatórias, prefigurativas, agindo como profetas seculares. Asimov apontou para isto quando disse: “today’s science fiction is tomorrow’s science fact”, e o escritor <J. G. Ballard>, autor de The Drowned World e The Wind From Nowhere, destacou que o sci-fi não apenas imaginou o futuro, mas ajudou a criá-lo: “what the writers of modern science fiction invent today, you and I will do tomorrow.” (apud Lévy, 2019, p. 6)
A célebre representação do empreendimento científico como algo que atravessa as gerações, com cientistas que sobem nos ombros dos gigantes, pode ser expandida: muitas vezes os gigantes sobre os ombros dos quais os cientistas sobem são os artistas, os autores de ficção. Muitas vezes os artistas é que estão “à frente” dos cientistas (não à toa são com frequência descritos como vanguarda) e imaginam primeiro, concretizando em suas obras uma visão do porvir, que apenas depois-da-arte será pesquisado e desenvolvido no domínio técnico-científico. A arte pode ser presciente – eis aí, aliás, uma palavra interessante: presciência contêm a ciência em seu cerne, com o prefixo que indica prefiguração. A dinâmica também funciona por retro-alimentação ou na base do vice-versa: o sci-fi transforma-se em sci-fato, e o sci-fato informa e inspira novos frutos de sci-fi, numa kinesis arte-ciência.
É neste sentido que poderíamos nos aventurar a sugerir que Júlio Verne teve a presciência do submarino em 20.000 Léguas Submarinas, que George Orwell teve a presciência da sociedade de vigilância em massa através de câmeras em 1984, ou que Aldous Huxley teve a presciência da engenharia genética e dos bebês de proveta em Admirável Mundo Novo. Obviamente, Verne, Orwell e Huxley não são as causas únicas ou os inventores do submarino, da mass surveillance ou da bioengenharia, mas suas obras de ficção impactaram cientistas e inventores que depois encontrariam técnicas e meios para sua efetiva concretização.
Duas obras aqui me parecem cruciais para este debate: a série documental produzida por Ridley Scott Prophets of Science Fiction e o livro ilustrado de Joel Levy From Science Fiction to Science Fact. As “visões” de autores como H.G. Wells, Júlio Verne, Aldous Huxley e Isaac Asimov, argumenta Levy, puderam inspirar pioneiros do empreendimento tecno-científico como Tesla, Von Braun, Steve Jobs ou Elon Musk. Neste contexto, parece-me muito significativo que a palavra prescience contenha dentro de si science, e que com frequência os autores de sci-fi sejam adjetivados como prescient: no livro de Levy, “the history and development of each technology is detailed and related in context, exploring the road from prescient fictional representation to real-life technology” (pg. 6).
Um exemplo é a bomba atômica: apesar de ter explodido pela primeira vez em Los Alamos, no Novo México/EUA, em 16 de Julho de 1945, após um processo que o filme <Oppenheimer de Christopher Nolan> relatou em minúcias, ela foi prevista por H.G. Wells 32 anos antes em The World Set Free, de 1913. Desde sua invenção e confecção, a bomba nuclear entrou para a condição humana e não cessou de inspirar novas visões distópicas no campo do sci-fi antecipatório, gerando obras sobre conflitos com armas nucleares que, para elencar apenas alguns destaques no campo audiovisual incluem On The Beach (1959, Stanley Kramer), Dr. Strangelove (1984, Stanley Kubrick), The War Game (1966, Peter Watkins), The Day After (1983, Nicholas Meyer), Threads (1984, Mick Jackson).
A guerra nuclear, que ainda não ocorreu de fato (o ataque dos EUA a Hiroshima e Nagasaki, em 1945, foi unilateral, não houve resposta através de uma vingança com uso de bombas atômicas também), é algo que o cinema pré-figura, uma situação sobre a qual certos filmes buscam ter presciência. Poderíamos argumentar que tal vertente da produção cultural participa do contexto da Guerra Fria e da ansiedade diante de seu esquentamento, podendo incluir uma tendência de utilizar-se do produto cultural como um modo de “falar à humanidade”, muitas vezes para assustá-la e fazê-la acordar de um torpor, mudando rumos que podem conduzi-la à extinção. Sobre o tema, Peter Conrad destacou:
“Perhaps the furthest reach of this ministry to mankind came at the end of 1959 when Stanley Kramer planned a worldwide premiere for his adaptation of Nevil Shute’s novel On the Beach. The book envisions the gradual extermination of the human race after a brief and pointless nuclear war; it is set in Melbourne, where the doomed citizens prepare to die as radioactivity drifts down from the northern hemisphere. Kramer arranged for On the Beach to open simultaneously in Europe, the Americas, Asia and Australia, as proof of his ambition ‘to create a film for people in the power of their mass, a film that might make people everywhere feel compassion for themselves’. The mass medium first convened a global community, then confronted it with the spectacle of its own extinction.” (CONRAD: 2021, p. 27)
Um dos casos mais interessantes para nossa consideração mais detalhada é o de Primo Levi (1919-1987), escritor e químico italiano que costuma ser reconhecido sobretudo por ter sobrevivido ao Holocausto (esteve detido no campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau) e ter escrito obras memorialísticas que estão entre os mais importantes testemunhos sobre a Shoah já escritos. Poucos sabem que Levi escreveu também ficção científica e realizou uma série de proezas através dos contos reunidos na obra O Sexto Dia, que reúne Storie Naturalli (de 1966) e Vizio de Forma (de 1971). No Brasil, estão reunidos no volume 71 Contos publicados pela Cia das Letras.
Uma das proezas de Levi foi ter previsto o que hoje é conhecido como impressora 3D – como explica seu quase xará Levy:
“the 3D printer is a device that lays down some form of plastic (in the sense of malleable) medium in layers to build up a three-dimensional form. Such printers are heralded as the drivers of a second Industrial Revolution, in which manufacturing is distributed and universal, available to all through desktop 3D printing machines. These devices are already available, usually restricted to fabrication using quick-setting plastics or resins, but large and more specialized machines can print in media varying from living cells and foodstuffs to metal to mud or concrete. Large-scale concrete printers, for instance, are suggested as a solution to housing crises such as those found in refugee camps where rapidly assembled, cheaply erected structures are needes. Meanwhile, biological implants and replacement tissues can be printed by laying down layers of cells on organic scaffolding, and in the near future it may be possivle to print entire organs for transplant. The true conceptual forefather of the 3D printer is a 1964 story by Italian writer Primo Levi, L’ordine a buon mercata’ (“Order on the Cheap”). A mysterious multinational enterprise of dubious intentions makes available a device called the Mimer-duplicator, which can create exact replicas of anything from money and diamonds to food and humans. It works by extruding ‘extremely thin superimposed layers’ of a multi-element substance named ‘pabulum’. This is a concise and extremely accurate description of how a modern-day 3D printer works.” (LEVY, Joel, 2019, p. 97, André Deutsch Editions)
Não somente sobre as impressoras 3D Primo Levi foi surpreendemente presciente, em um conto como “Retirement Fund” ele realizou uma impressionante previsão da imersão em realidades virtuais, descrevendo dispositivos como o capacete de V.R. (virtual reality helmet) e a noção de diversas “fitas” (tapes) com conteúdos que o sujeito poderia experimentar através desta mediação imersiva.
Também realizou experimentos literários fundados na noção de criogenia, ou seja, do congelamento de um organismo humano que teria suas funções vitais trazidas a um estado de “hibernação”, aumentando assim a expectativa de “vida” para vários séculos – tema da estória “The Sleeping Beauty In The Fridge – A Winter’s Tale”.
No Cambridge Companion, capítulo 7, Charlotte Ross dedicou seus esforços à ficção científica de Primo Levi e sublinhou que muitos de seus escritos nesta área também funciona como “contos morais” e que há uma “ponte” entre eles e os muito mais célebres escritos do autor sobre os Lager:
“Levi revealed that they were inspired by his perception of a ‘formal defect’ afflicting various aspects of our social life and moral framework – a perception that he believed to be relatively widespread. (…) Levi simultaneously asserts that a definite bridge does exist linking his science-fiction stories to his testimonial works. He names the Holocaust as the largest of the defects of our age – a ‘monster’ that comes into being when reason sleeps (OI, 1435). Moreover, he denies that in writing these stories he was in some way betraying his earlier works. In his view, there is a clear resonance between his testimonial and his science-fiction writings. In both we see human existence reduced to slavery, the individual reified, whether through Nazism or through forms of technology.” (ROSS, pg. 106)
Eduardo Carli de Moraes
Amsterdam, December 2023
BIBLIOGRAPHY
CONRAD, Peter. Mysteries of Cinema. Thames & Hudson, 2021.
LEVI, Primo. The Sixth Day. Sphere Books, UK, 1991.
LÉVY, Joel. From Science Fiction to Science Fact. London: André Deutsch, 2019.
ROSS, Catherine. In: Cambridge Companion to Primo Levi. Cambridge, 2007. Chapter 7.
MANUSCRIPTS
Knowledge-Under-Construction
Publicado em: 22/12/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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